Wednesday, September 28, 2005

 

Caro amigo,

Enquanto isso, no jardim, Ela passeava por entre as flores, como diriam alguns, se perdia na imensidão do jardim do inimaginável. Saltava umas poças, em outras escorregava, se sujava, desequilibrava e, algumas vezes, caía. Assim era Ela, sempre sorridente, sempre a ignorar os obstáculos.

De repente é surpreendida pela curiosidade e em frente a caixa do correio, abre a carta endereçada a Senhora Irracionalidade, a remetente, caríssima Lua.

E me conte mais dela”

“Não se preocupe, ela está pelos jardins, mas logo entrará”

“Mas é bom que ela já ensaie os saltos.”

Como assim andam a vasculhar sua vida? Observá-la, planejar saltos, quantificar quedas, entornar títulos. Com a cólera dissimulada em sua face, num certo ar de deboche, Ela repõe a epístola na caixa e solta um curto e imperativo,

- Não sabem elas que estou à espera do terceiro.



O primeiro me chegou como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia, trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens e as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio, me chamava de rainha
Me encontrou tão desarmada que tocou meu coração
Mas não me negava nada, e assustada, eu disse não

O segundo me chegou como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente tão amarga de tragar
Indagou o meu passado e cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta me chamava de perdida
Me encontrou tão desarmada que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada, e assustada, eu disse não

O terceiro me chegou como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada também nada perguntou
Mal sei como ele se chama mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama e me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro e antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro dentro do meu coração


 

cara memória,

é que essa coisa de esquecer é deveras difícil. Mais difícil até que desgostar. Desgostar é fichinha. Complicado mesmo é esse tal de esquecer. Tem pessoas que não se querem esquecidas. Estão sempre por perto. Quando se pensa que já não resta nadica de nada delas elas aparecem dão um sorriso como quem diz " te enganei ó" e depois vão dar outras voltas. Ficam assim brincando comigo. Olhe que qualquer dia eu entro na brincadeira de verdade...

"as coisas findas/ muito mais que lindas/ essas ficarão"
Drummond

Wednesday, September 14, 2005

 

Caríssimo,

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho... E não sou nada!...

Florbela Espanca

Saturday, September 10, 2005

 

Cara irracionalidade,

amiga que saudade... Há tempos que não lhe faço visitas. Tenho andado muito longe de abismos ultimamente, saltos só com redes a me amparar. Sua carta deixou gostinho de quero mais. Como é bom te sentir perto assim por letras, te supor dentro de entrelinhas. Muita saudade dos velhos tempos, mas você bem o sabe o inesperado, o surpreendente não tem vindo me visitar e ele só ele sabe exatamente o caminho de sua morada. Quem sabe até o fim do ano ele não aparece pra desejar boas festas? Enquanto isso, escreva-me, escreva-me. Conte-me de você.

E me conte mais dela. Bom ter notícias de que ela chegou e está bem. Já estava preocupada pela demora e esse seu silêncio me doía. Temia ter ela encontrado algum falso atalho (porque você bem o sabe que na estrada tortuosa de sua casa há muitos desvios que não se sabe aonda levam) e tivesse se perdido nessa jornada. Não se preocupe ela está pelos jardins mas logo entrará. Por certo está recobrando as forças (a viagem é longa) e deve estar a procurar nas flores o inimaginável. Ele sempre chega nas horas não marcadas porque tem de fazer paradas pra visitar velhas amantes, é sempre assim...

Mas é bom que ela já ensaie os saltos. É preciso muito treino pra chegar à soleira da porta num salto só. Então é bom que já prepare o corpo pra tal aventura. O amor exige muito do corpo, você bem o sabe. Precisa-se correr, saltar, preparar o fôlego, enrigecer os músculos. Amor não é tarefa fácil. Amor não é coisa pra medrosos.

Amiga, preciso interromper a carta. Alguém à porta me chama. E você sabe discurso parado não pode ser emendado. Portanto, as outras notícias ficam na próxima missiva. Mas me escreva, não tarde em escrever porque me aperta o coração a demora.

beijos saudosos,
Lua
 

Caro amigo,

Essa minha intimidade com a poesia de teus olhos ainda me levará à tristeza. Sinto muito, meu amor, eu quero ser feliz. Adeus.

 

caro espaço,

é que hoje eu fui ver o mar....
e ele era aquela infinitude intacta
mesmo sabendo que a onda já se ergue

é que hoje eu fui ver o rio....
e ele era o que sempre foi: intacto
prevendo a cheia que virá transbordar

é que hoje eu fui me ver...
e eu não estava intacta
e eu não sou o que sempre fui

é que hoje eu vi o mar
eu vi o rio
eu me vi
e vi você


"uma andava tonta grávida de lua e outra andava nua ávida de mar" Chico Buarque

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