Thursday, March 31, 2005
Cara amiga chuva,
Cara amiga chuva,
Sempre fui afeito aos meses de inverno. O céu cinzento, os relâmpagos, o vento forte nos vidros da casa davam a tudo um ar sincero. Nas alegrias das tardes de sol que tanto me eram íntimas a harmonia era a regra, mas nas manhãs de tempestades as contradições eram expostas e me deixavam bastante à-vontade com a ordem natural das coisas. Era assim que eu passava horas com meus livros, estudando no sofá da sala, apenas por desculpa. Interessava-me mesmo poder vislumbrar a reação da existência a você, cara amiga chuva. Homens e mulheres corriam de sua chegada, os animais – inclusive os homens e as mulheres – buscavam abrigo, as ruas se encharcavam, as roupas nos varais também, guarda-chuvas passavam a fazer parte do mundo dos fatos – porque antes, fechados, tinham uma cara tão grande de idéia! – mainha reclamava por ter de dirigir na chuva e não gostar, meu irmão achava muito bonita a chuva caindo e lhe interessava a força do vento, Aia reclamava por ter que lavar a roupa novamente, vovó agradecia por não ter que aguar as plantas, vovô ficava emburrado vendo TV o dia inteiro, sem poder ir jogar dominó no Bode, painho – que sempre teve muito jeito de sol – não tinha lugar no mundo, enquanto você caia. Eu, por outro lado, sempre vivi de onipresenças em sua presença: cada nuvem carregada de ti era um descarrego de minhas imaginações. Nunca soube exatamente aonde iam os anjos nos céus sem nuvens, mas também nunca entendi o que eles faziam durante as chuvas. Mainha tinha mania de dizer, quando trovejava, que São Pedro estava fazendo faxina no céu, e que os barulhos aconteciam porque ele adorava arrastar os móveis. Não me lembro de um dia sequer ter acreditado nisso, mas sempre imaginei os anjos com ele enquanto chovia. Algo de que me recordo é que só depois de muito tempo fui entender que relâmpagos e trovões tinham algo a ver uns com os outros. Havia uma disputa aqui em casa sobre relâmpagos e trovões: meu irmão adorava os relâmpagos, a eletricidade, a beleza deles; eu preferia os trovões, sua força, braveza, repercussão. Trovões serem manifestações sonoras dos relâmpagos foi algo que me frustrou muitíssimo! Mas eu ganhei cumplicidade com você, cara amiga, a parte dos relâmpagos e trovões, quando, depois de muito tempo apenas a lhe observar, ganhei você em minha alma e fui em sua água brincar: banho de chuva! Mas banho de chuva sem guarda-chuva, sem capa de chuva, sem essas coisas-de-chuva que em verdade só servem para lhe evitar. Molhei-me tanto, lavei-me tanto, que passei o resto do dia e toda a noite espirrando, ao som da voz de minha mãe que brigava, tadinha, comigo, e eu nem ligava, pois estava certo, eu havia vivido o fenomenal. Dessa essência eram as reações do mundo às contradições do mundo que chovia. Eu bem que achava graça de tudo e restava-me perplexo, sempre que chovia, no sofá. Ficava eu lá, no final das contas, como ainda fico, quando chove: cúmplice de tudo.
Sempre fui afeito aos meses de inverno. O céu cinzento, os relâmpagos, o vento forte nos vidros da casa davam a tudo um ar sincero. Nas alegrias das tardes de sol que tanto me eram íntimas a harmonia era a regra, mas nas manhãs de tempestades as contradições eram expostas e me deixavam bastante à-vontade com a ordem natural das coisas. Era assim que eu passava horas com meus livros, estudando no sofá da sala, apenas por desculpa. Interessava-me mesmo poder vislumbrar a reação da existência a você, cara amiga chuva. Homens e mulheres corriam de sua chegada, os animais – inclusive os homens e as mulheres – buscavam abrigo, as ruas se encharcavam, as roupas nos varais também, guarda-chuvas passavam a fazer parte do mundo dos fatos – porque antes, fechados, tinham uma cara tão grande de idéia! – mainha reclamava por ter de dirigir na chuva e não gostar, meu irmão achava muito bonita a chuva caindo e lhe interessava a força do vento, Aia reclamava por ter que lavar a roupa novamente, vovó agradecia por não ter que aguar as plantas, vovô ficava emburrado vendo TV o dia inteiro, sem poder ir jogar dominó no Bode, painho – que sempre teve muito jeito de sol – não tinha lugar no mundo, enquanto você caia. Eu, por outro lado, sempre vivi de onipresenças em sua presença: cada nuvem carregada de ti era um descarrego de minhas imaginações. Nunca soube exatamente aonde iam os anjos nos céus sem nuvens, mas também nunca entendi o que eles faziam durante as chuvas. Mainha tinha mania de dizer, quando trovejava, que São Pedro estava fazendo faxina no céu, e que os barulhos aconteciam porque ele adorava arrastar os móveis. Não me lembro de um dia sequer ter acreditado nisso, mas sempre imaginei os anjos com ele enquanto chovia. Algo de que me recordo é que só depois de muito tempo fui entender que relâmpagos e trovões tinham algo a ver uns com os outros. Havia uma disputa aqui em casa sobre relâmpagos e trovões: meu irmão adorava os relâmpagos, a eletricidade, a beleza deles; eu preferia os trovões, sua força, braveza, repercussão. Trovões serem manifestações sonoras dos relâmpagos foi algo que me frustrou muitíssimo! Mas eu ganhei cumplicidade com você, cara amiga, a parte dos relâmpagos e trovões, quando, depois de muito tempo apenas a lhe observar, ganhei você em minha alma e fui em sua água brincar: banho de chuva! Mas banho de chuva sem guarda-chuva, sem capa de chuva, sem essas coisas-de-chuva que em verdade só servem para lhe evitar. Molhei-me tanto, lavei-me tanto, que passei o resto do dia e toda a noite espirrando, ao som da voz de minha mãe que brigava, tadinha, comigo, e eu nem ligava, pois estava certo, eu havia vivido o fenomenal. Dessa essência eram as reações do mundo às contradições do mundo que chovia. Eu bem que achava graça de tudo e restava-me perplexo, sempre que chovia, no sofá. Ficava eu lá, no final das contas, como ainda fico, quando chove: cúmplice de tudo.
Wednesday, March 30, 2005
Cara amiga Recife, caro amigo Recife
Nunca sei teu sexo. A cidade, o município, o Antigo, a engarrafada, o sedutor, a amiga, o amor, a dose, o gole. Nunca sei teu sexo, porque foi em ti que perdi o meu. Não sei porque às vezes insisto em esquecer disso. Ganho outros ares, outras temperaturas. Mas vista você de longe, de cima, ou estando eu embrenhado em tuas vielas, em tuas favelas, em tuas pontes, num, noutro cais, és-me mulher e homem de minhas aventuras. Talvez porque foi em ti que me afirmei, talvez porque tua gente, nas calçadas e nas ruas, me entontece, talvez porque as águas que te cortam, também cortem meu passado e todos os rios que desaguaram no mar vermelho de minha alma, talvez porque me reconheças: és-me linda, querida. E linda, quero-te ao colo a dizer palavras minhas e sorrir de minhas besteiras. E lindo, quero-te de olhos em meus olhos e perdido com minhas mãos. Porque, Recife, respiro teu março, respiro tua história, respiro tuas bandeiras, revoluções, revoltas, sotaque, sangue, saudade. E o faço porque respirá-lo é andar entre o oculto e intacto. O faço porque não me quero longe de teus mistérios, de tuas sombras, de tua noite. Quero-te bem perto, sempre mais perto, da tarde mansa que sou eu, do céu cinzento que sou eu, do mar vadio que sou eu, do furacão em rota que sou eu. Junto de ti estou mais seguro, mais arriscado. E não posso deixar de estar mais em casa, mais acuado. Porque és, Recife, minha verdade. E eu que não tenho medo de conhecer minhas verdades me sinto como a tua voz que dita meus passos. Pois nunca sei teu sexo, mas sei do meu e o meu és-te inteiro e o meu és-te rubro e bonito como uma manhã de carnaval